Eu desconheço se realmente era mais barato filmar três curtas de meia hora, cada um com sua história e elenco independentes, do que três longas inteiros. Seja como for, o próprio Charles Band dirigiu os três segmentos sem relação entre si, sendo que apenas um deles era original (a adaptação de Lovecraft sobre a qual estamos falando), e os outros dois eram continuações de filmes populares da Empire, Trancers (que Band dirigiu em 1985) e The Dungeonmaster (1984, de vários diretores).
Dessa forma, Pulse Pounders era composto por The Evil Clergyman, Trancers 2 – The Return of Jack Deth (com Tim Thomerson, Helen Hunt e Grace Zabriskie) e The Dungeonmaster 2 – A Sorcerer’s Nightmare (com Jeffrey Byron e Richard Moll). A ideia em si é bem curiosa, e você pode pensar nesta coletânea como uma espécie de “Grindhouse”, aquele projeto fracassado de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, só que 20 anos antes (chupa, Tarantino! chupa, Rodriguez!).
Enfim, os três filminhos de meia hora foram completados e Band já começava a divulgar sua antologia com o título Pulse Pounders Volume 1, comprovando que havia a intenção de produzir mais coletâneas no futuro, quem sabe até trazendo mini-sequências de meia hora para outros belos filmes da Empire Pictures, como Metalstorm ou Patrulheiros do Espaço, e quem sabe mais adaptações curtinhas de contos de Lovecraft.
Mas embora Pulse Pounders tenha sido anunciado e divulgado, inclusive com trailer em fitas da produtora (veja abaixo), a crise financeira da Empire Pictures decretou seu sepultamento: não demorou para a pequena empresa de Band ir à falência, e a prometida antologia acabou nunca sendo lançada. Pior: os negativos em 35mm foram extraviados no inferno que se desencadeia sempre que uma companhia fecha, e o projeto parecia perdido para sempre.
Pouco tempo depois, Charles Band abriu uma nova empresa, a Full Moon, e retomou diversos projetos antigos, com ainda menos grana e direto para o mercado de vídeo. Com Pulse Pounders perdido para sempre (ou ao menos assim se imaginava), o produtor resolveu dirigir até um novo Trancers 2 em 1991, descartando completamente aquele curta filmado alguns anos antes.
Já The Dungeonmaster 2 ficou perdido no limbo, enquanto outras adaptações baratas de contos de H.P. Lovecraft (como Aprisionados pelo Medo, de 1994, e O Castelo Maldito, de 1995) ajudaram a manter The Evil Clergyman devidamente esquecido durante décadas.
Como bom espertalhão e comerciante que é, Band resolveu desmembrar Pulse Pounders e lançar os três curtas separadamente, um por ano, fazendo o possível e o impossível para dar-lhes um mínimo de restauração – já que, lembre-se, estamos falando de imagens capturadas de uma velha fita de vídeo, e sem música nem efeitos sonoros!
Bem, encerrada a aula de história, vamos ao que interessa: o que se pode dizer do mítico The Evil Clergyman? Valeu a pena esperar 25 anos, ou seria melhor que o curta tivesse ficado perdido para sempre?
O conto homônimo que inspirou The Evil Clergyman foi publicado no Brasil como O Clérigo Diabólico numa velha antologia de contos do autor chamada A Tumba e Outras Histórias, lançada pela Francisco Alves Editora em 1991 (e republicado em 2007 no formato pocket pela L&PM). Trata-se de um conto bem curto (apenas cinco páginas) que Lovecraft escreveu em 1933, mas só foi publicado em 1939, depois da morte do autor (que foi em 1937), na revista “Weird Talers”. (Você pode ler o conto completo, em inglês, clicando aqui)
A história original é até bem inexpressiva, narrada por um homem que visita uma velha casa e é atraído até o sótão. Ali, encontra um clérigo queimando velhos livros de magia negra na lareira. Outros religiosos, incluindo um bispo, aparecem para confrontar o “clérigo diabólico”, mas ele os confronta usando um objeto mágico que estava sobre a mesa.
Quando o próprio narrador é ameaçado pela diabólica figura, ele resolve utilizar o mesmo objeto para se livrar do clérigo. Mas, ao tentar fugir da casa, se olha num espelho e percebe que está diferente: o reflexo não é dele, mas sim do “clérigo diabólico”. E o conto termina assim: “Pelo resto da minha vida, exteriormente, eu seria aquele homem!”.
Nada muito inspirador, certo? Assim, não é de se espantar que o roteirista Dennis Paoli, o mesmo que escreveu diversas adaptações de Lovecraft para Stuart Gordon dirigir (de Reanimator a Dagon), tenha aproveitado bem pouco do conto ao escrever The Evil Clergyman. E, mais uma vez, sexo e perversão são a mola-mestra da trama, a exemplo do que já havia acontecido em Reanimator e Do Além.
Ocorre que Said e Jonathan foram amantes no passado. Ao saber da morte misteriosa do religioso, ocorrida há alguns dias, a garota resolve visitar o quarto onde ele vivia e onde ambos dividiram momentos de intimidade. Porém, no momento em que a moça fica sozinha no local, Jonathan reaparece. E não se trata de uma assombração, conforme ela irá confirmar por conta própria. No momento seguinte, os dois estão na cama “tirando o atraso”.
Pelos próximos vinte e poucos minutos, aparecem ainda um misterioso bispo (interpretado pelo excelente David Warner), que acusa Jonathan de assassinato, e uma bizarra criatura meio homem, meio rato (“interpretada” por David Gale, o Dr. Hill de Reanimator, aqui debaixo de carregada maquiagem). É quando Said começa a desconfiar das boas intenções do clérigo por quem se apaixonou…
A exemplo do que já havia feito em seus roteiros de Reanimator e Do Além, Dennis Paoli escapa da armadilha de tentar adaptar Lovecraft com muita fidelidade, descartando a narrativa em primeira pessoa e buscando uma abordagem que mistura horror e erotismo – aqui, como acontecia em Reanimator, a pobre Barbara também leva umas lambidas em lugar estratégico do vilão interpretado por David Gale!
É uma pena que Stuart Gordon também não tenha voltado para assinar a direção e deixar o clima ainda próximo do universo dos seus Reanimator e Do Além. Band até que se sai bem ao tentar emular esse clima, mas é impossível não ficar imaginando como o curta ficaria caso Gordon estivesse no comando, ainda mais conhecendo sua paixão pelos contos e pelo universo de Lovecraft.
O restante da turma manda muito bem, e, além dos quatro já citados, completa o reduzido elenco a veterana Una Brandon-Jones, no papel da proprietária do castelo. Eu só lamento o pouco tempo em cena de David Gale e seu homem-rato, já que, depois de anos lendo sobre o curta em minhas pesquisas sobre a antologia Pulse Pounders, eu sempre imaginei que o monstrinho teria um papel muito maior na trama. (O curta é dedicado ao ator, que faleceu em 1991.)
Claro que, como o curta foi resgatado de uma cópia em VHS de quase 30 anos atrás, a qualidade da imagem não é das melhores, um problema que é ainda mais perceptível nas cenas escuras. Infelizmente, não há muito o que fazer nesse departamento, a não ser que os negativos originais reapareçam e permitam fazer uma nova montagem – quem sabe até com cenas que não foram aproveitadas na “workprint” daquela época.
É interessante constatar que os efeitos da criatura “homem-rato” não foram produzidos em stop-motion, como era comum naquela época nas produções da Empire. Pelo contrário, o pobre David Gale vestiu uma roupa de rato em tamanho natural e foi obrigado a zanzar de quatro por um cenário repleto de estruturas aumentadas, para dar a ideia de que o monstrinho é bem menor do que realmente era.
Isso exigiu bastante criatividade do time dos efeitos especiais, principalmente para a cena em que o homem-rato aparece dando umas lambidas na bunda da mocinha. Mesmo com pouco dinheiro em caixa, Band dispensou truques fotográficos ou montagens porcas e mandou construir uma réplica da bunda de Barbara Crampton em dimensões gigantes (!!!) só para poder filmar essa cena.
No bate-papo realizado na premiére do filme, em agosto do ano passado, a atriz inclusive lembrou com surpresa da réplica gigante dessa bela parte da sua anatomia, e questionou Band sobre o destino do “bundão”; segundo o diretor-produtor, alguém da equipe deve ter guardado de recordação, sabe-se lá com que propósito!
No mesmo bate-papo, Band lembrou que a equipe dos efeitos tentou fazer uma complicada trucagem em que o rosto de Jeffrey Combs se transformava no de Barbara Crampton; porém, após alguns testes, eles abandonaram a ideia e preferiram deixar a “transição” para a imaginação do espectador. Confesso que fiquei curioso para ver como resolveram algo tão complicado tecnicamente com os efeitos práticos da época…
Picaretagens à parte, The Evil Clergyman é muito divertido e vale principalmente pelo fator nostalgia, já que todo fã das produções da extinta Empire, e de suas clássicas adaptações de Lovecraft, passou os últimos anos sonhando com esse curta-metragem. Vê-lo hoje, nesses tristes tempos em que o gênero parece dominado por refilmagens e overdose de CGI, é como fazer uma viagem no tempo até uma época que transpirava simplicidade e criatividade.
E, confesso, dá a maior saudade daquelas adaptações classe B de Lovecraft que a turma da Empire/Full Moon adorava produzir. Porque se hoje boa parte dos cinéfilos sonha com a tão comentada adaptação de Nas Montanhas da Loucura por Guillermo Del Toro, a única coisa que realmente me deixaria animado seria um retorno do velho Stuart Gordon aos textos de Lovecraft.
Mas como isso parece um sonho cada vez mais distante, o que nos resta são esses 27 minutos de The Evil Clergyman para quebrar o galho…
Uma bela e estranha raridade, gostei bastante, já li muito Lovecraft mas desconhecia esse conto, obrigado Fabiano e Carlos pela partilha. Abraços.
ResponderExcluirLegal né Karamazov
ExcluirEu também não conhecia, aí vasculhando o bocadoinferno acabei achando essa raridade.